MP 1.171, RBF N. 2.119 e o lento avanço rumo à regulamentação dos Trusts no Brasil

MP 1.171, RBF N. 2.119 e o lento avanço rumo à regulamentação dos Trusts no Brasil

João Pedro Goetz Volz
Advogado tributário internacional.
COO Saint Joseph Trust Company.
jvolz@saintjosephgroup.com

A questão dos Trusts no Brasil tem sido amplamente debatida durante a maior parte da última década. Como uma jurisdição de direito de origem romano-germânica (“civil law”) (*1), o Brasil historicamente se esquivou da estrutura de Trust como uma realidade legislativa. Claro, isso está longe de impedir que brasileiros proeminentes usem essa estrutura ativamente em seu planejamento internacional. A privacidade e proteção de ativos oferecidos pela estrutura têm sido atraentes para indivíduos com alto patrimônio líquido que buscam proteger parte do seu ativo internacional contra riscos econômicos e políticos.

O uso de Trusts entrou na consciência política social em 2016, quando conhecidos políticos foram descobertos usando a estrutura em seu planejamento pessoal. Com a anistia fiscal geral concedida no mesmo ano, ficou claro que algum tipo de posição das autoridades fiscais brasileiras seria necessário. Foi durante esse período que as autoridades, em uma discussão informal de perguntas e respostas, fizeram a primeira incursão nos Trusts: uma simples declaração detalhando que os ativos em um Trust revogável seriam declarados pelos instituidores, enquanto aqueles em um Trust irrevogável seriam declarados pelos beneficiários do Trust. Desde então tivemos muita especulação, embora um silêncio geral sobre a edição de uma legislação formal a respeito dessas estruturas.

Embora a expectativa fosse a de um ato legislativo formal sobre esses instrumentos – e, de fato, várias versões de propostas de atos legislativos foram publicadas –, nada se tornou formal. Isso foi até os últimos meses, quando, em duas ocasiões, as autoridades fiscais decidiram agir por conta própria e contornar a necessária deliberação pelo Congresso. Por meio desses dois atos, eles criaram as bases do que está se configurando como sendo a posição da regulação de Trusts no Brasil.

O direito internacional é um conceito difícil para a maioria dos países, pois envolve a tradução da realidade internacional para a estrutura jurídica nacional. Embora os tratados contribuam muito para promover esse aspecto, eles têm sido, em grande parte, limitados a fatos e circunstâncias específicos. Os países tendem a temer abrir mão, mesmo que nominalmente, de qualquer parte de sua soberania. A maioria das leis internacionais são uma reação regional ao que seus cidadãos estão fazendo no exterior. Foi isso que esteve por trás dos recentes esforços legislativos que afetam os Trusts em muitos países sul-americanos. Os cidadãos desses países não apenas enviavam seu dinheiro para o exterior, mas o faziam usando vários tipos de entidades que não existiam de maneira semelhante ou equivalente no respectivo direito nacional. Essas estruturas foram até mesmo escolhidas às vezes por causa de seu sistema jurídico exótico, que conferia aos usuários um ar adicional de defensabilidade. Os esforços para criar uma estrutura nacional para esses instrumentos são extremamente valiosos, pois permitem que os países compreendam melhor o comportamento de seus cidadãos e, aos cidadãos, uma maior clareza sobre como cumprir a lei.

Como sugerido acima, o Brasil não esteve completamente isento de menções aos Trusts em seu passado. Em 2016 e em 2021, houve reconhecimento da estrutura, mas, em ambos os casos, o foi em pronunciamentos semiformais, e não em um verdadeiro sentido de normatização do instituto. Essas posições não ajudaram muito a esclarecer o que as pessoas que usam essas estruturas deveriam fazer exatamente, ou foram quase sem sentido em sua compreensão das operações das estruturas.

Isso nos leva às mudanças legislativas mais recentes no Brasil. A “Instrução Normativa RFB n. 2119, de 06 de dezembro de 2022”, modificada ainda em março de 2023, deu o primeiro passo coerente no reconhecimento da existência das estruturas de Trust no Brasil. No artigo 53, seção 5, buscou-se definir quais as partes em um Trust devem ser identificadas quando a estrutura ingressa direta ou indiretamente no mercado brasileiro para investir. Essa regulamentação buscou identificar os investidores internos e a definição do que seria interesse substancial em direitos econômicos ou autoridade decisória.

Ainda mais recente e de forma surpreendente, a questão da tributação de saída foi abordada pela Medida Provisória (“MP”) n. 1.171. A regulamentação buscou principalmente criar uma série de novas regras de CFC (*2) para estruturas offshore de propriedade de pessoa física brasileira e criar um regime de não diferimento de renda passiva. Também deu alguns passos para identificar quando as partes de um Trust precisam informar sobre as suas estruturas. Notadamente, a MP determinou que os instituidores de Trust devem declarar todos os ativos do Trust como se fossem diretamente detidos por eles, e os beneficiários do Trust devem declarar os ativos somente após o falecimento dos instituidores. Estabeleceu, ademais, que as distribuições de renda dos Trusts seriam tributadas em nível federal à taxa de 22,5% (o que muitos começaram a questionar, já que também afirmam que o pagamento é caracterizado como doação, sujeitas a taxa de imposto estadual muito mais baixas). Mais importante: a MP 1.171 definiu que os instituidores sujeitos à declaração como sendo as pessoas físicas, fazendo-se entender que os Trusts instituídos por pessoas jurídicas não estariam sob o escopo da regulamentação.

Resta saber como essas medidas serão aplicadas. Como qualquer grande democracia, o Brasil sofre com a divisão entre os seus Poderes e não é surpresa que essas regulamentações sejam atos de agências executivas ou emanados do próprio Poder Executivo, e não de esforços legislativos. O que está mais claro é que a questão dos Trusts não está mais sendo ignorada pela maior economia da América do Sul, e esclarecimentos e regulamentações adicionais provavelmente seguirão o mesmo caminho nos próximos meses. Isso não é algo ruim. A regulamentação dessas estruturas não limita os benefícios que elas historicamente ofereceram e apenas nos oferece clareza sobre como planejar e manter ativos nacionais e internacionais. Uma estrutura corporativa bem regulamentada é melhor do que um estrutura corporativa não regulamentada, e uma estrutura corporativa não regulamentada é melhor do que uma estrutura corporativa mal regulamentada. Diferente do que fizeram no passado, o Brasil deu passos para se juntar ao espaço internacional. Se as futuras regulamentações se desenvolverem bem, poderemos ver benefícios para as estruturas de entrada e de saída de recursos do país.

Embora ainda esteja nos estágios de desenvolvimento, eu gostaria idealmente de ver uma legislação formal criando Trusts no Brasil que siga os padrões internacionais encontrados na maior parte do mundo desenvolvido. Ou seja: essas estruturas devem permitir que as famílias planejem a sucessão patrimonial e protejam os ativos. Idealmente, uma legislação formal e robusta sobre estruturas de Trust atrairia investimentos estrangeiros para o país e estabeleceria a base para uma clara e concisa comunicação internacional. Esse sonho ainda está longe da realidade e, a partir de hoje, os pequenos passos regulatórios são o máximo que podemos esperar.

*1 – Nos Estados que adotam o sistema jurídico do Civil Law, em contraposição ao sistema do Common Law, não há previsão formal correspondente em sua legislação civil ou empresarial acerca da constituição e do funcionamento dos Trusts., que se baseiam no instituto da propriedade beneficiária. De igual modo, especialmente, não há orientação formal na legislação tributária de tais Estados sobre como devem ser tratados os eventos de transferência de bens e distribuições realizadas no âmbito dos Trusts.

 

*2 – CFC é uma sigla utilizada para “Controlled Foreign Corporation”, ou, em tradução livre, “Sociedades Estrangeiras Controladas”. As regras de sociedades estrangeiras controladas são características de um sistema de imposto de renda projetado para limitar o diferimento artificial de impostos usando entidades offshore com baixa tributação.