Questões pontuais e controversas no Sistema Jurídico Brasileiro sobre a operação internacional de doação ou herança

Luiz Flávio Paina Resende Alves
Tomás Lima de Carvalho

Os planejamentos patrimoniais sucessórios que envolvem operações internacionais, ou mesmo os planejamentos tributários pré ou pós-imigratórios realizados, comumente se baseiam na utilização de estruturas societárias no país de origem e/ou em outra jurisdição internacional. Nesse sentido, algumas estratégias são implementadas visando a regular transferência de bens, direitos e rendimentos entre a pessoa física e/ou as estruturas societárias situadas nas referidas jurisdições, tais como incorporação em capital social, compra e venda de ativos, doação ou empréstimo.

Por outro lado, em algumas situações em que o destinatário do planejamento possui família em uma ou outra jurisdição e, em detrimento de regras sucessórias do referido país, possa vir a receber bens oriundos de pagamento de herança em jurisdição onde não possua residência fiscal, também é recomendável a adoção prévia de estratégias visando conferir eficiência tributária na transmissão futura de bens.

Com efeito, o presente artigo não tem por objetivo apresentar as possíveis soluções estratégicas para operacionalizar, com eficiência tributária e segurança jurídica, os atos de transferência internacional, direta ou indireta, de bens, direitos ou recursos. Até porque, tais soluções estratégicas demandam a análise específica do caso e os pormenores envolvidos na situação concreta e nas legislações dos países envolvidos. Para isso, se recomenda a realização de um planejamento jurídico específico.

O que se pretende, pois, é apresentar as controvérsias existentes no sistema jurídico brasileiro sobre as operações internacionais de doação e herança, para apontar as vantagens operacionais, os riscos envolvidos, e as possíveis discussões jurídico-tributárias que podem ocorrer.

 

 

Visão Geral das Regras de incidência (ou não) de ITCMD sobre doação ou herança:

 

No final de fevereiro de 2021, o Supremo Tribunal Federal brasileiro (“STF”) decidiu, com repercussão geral, pela não incidência de imposto sobre doação ou herança (“ITCMD”) em bens localizados no exterior, especialmente se o doador ou falecido (herança) não forem residentes brasileiros. 

A discussão, no caso concreto, abarcou a eventual competência dos Estados em exigir o recolhimento de ITCMD na transmissão causa mortis e doação de bens imóveis e seus respectivos direitos, assim como de bens móveis, títulos e créditos ainda que localizados no exterior.

Por maioria de votos, o STF, decidiu que os temas (i) da tributação dos não residentes em relação aos bens e direitos localizados no território brasileiro e (ii) da regra de tributar a totalidade das transmissões efetuadas por transmitentes nele domiciliados, incluindo as de bens localizados no exterior, não podem ser tratados unilateralmente pelos estados e pelo Distrito Federal

Com este resultado favorável, os Estados da Federação não podem realizar a cobrança de ITCMD para os casos de doação ou sucessão de bens no exterior, até que se tenha uma lei complementar aprovada pelo Congresso embasando tal exigência. 

A decisão do STF fundou-se no art. 155, §1°, III, b da Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB), que limita a competência dos estados para a instituição do ITCMD ao estabelecer que cabe à Lei Complementar – e não a leis estaduais – regular tal competência em relação aos casos em que o “de cujus possuía bens, era residente ou domiciliado ou teve seu inventário processado no exterior”. 

Concluiu-se, pois, que a Constituição não concedeu aos Estados a competência para instituir o ITCMD nessa hipótese, e que os Estados que o fizeram incidiram em inconstitucionalidade formal por afronta a referido dispositivo constitucional.

 

Com efeito, eis a regra prescrita na CRFB:

 

Art. 155. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre:

I – Transmissão causa mortis e doação, de quaisquer bens ou direitos;

[…]

  • 1º O imposto previsto no inciso I:

I – Relativamente a bens imóveis e respectivos direitos, compete ao Estado da situação do bem, ou ao Distrito Federal;

II – Relativamente a bens móveis, títulos e créditos, compete ao Estado onde se processar o inventário ou arrolamento, ou tiver domicílio o doador, ou ao Distrito Federal;

III – Terá a competência para sua instituição regulada por lei complementar:

  1. a) Se o doador tiver domicílio ou residência no exterior;
  2. b) Se o de cujus possuía bens, era residente ou domiciliado ou teve o seu inventário processado no exterior;

 

Desse modo, tendo em vista o disposto no art. 155, §1°, III, b da CRFB, e o julgamento proferido pelo STF, entende-se que a impossibilidade de incidência de ITCMD, por ausência de Lei Complementar, pressupõe que o doador ou falecido tenha residência no exterior, ou, se residente no Brasil, o objeto da doação seja um bem imóvel situado no exterior; ou o Inventário e Partilha seja processado no exterior ou, mesmo que processado no Brasil, tenha por objeto bem móvel ou imóvel localizado no exterior

 

 


Entendimento da Receita Federal sobre incidência de IRRF nas operações de Doação ou Sucessão de Bens e Direitos situados no Brasil, oriundo de brasileiro para beneficiário não residente:

 

O antigo Regulamento do Imposto de Renda (“RIR/1999”) trazia expressamente em seu artigo 690 que as remessas de valores havidos por herança ou doação por residente ou domiciliado no exterior não se sujeitavam ao Imposto de Renda Retido na Fonte (“IRRF”). Essa disposição não foi repetida no Decreto que o sucedeu, o novo RIR/2018, que foi omisso quanto a continuidade da dispensa da retenção do IRRF nessas hipóteses. 

 

Com isso, a Receita Federal do Brasil passou a se manifestar por meio de Soluções de Consulta que estabeleceram que, a partir da vigência do RIR/2018, as remessas a título de herança ou doação ao exterior passaram a se sujeitar ao IRRF à alíquota de 15% (quinze por cento), ou de 25% (vinte e cinco por cento), na hipótese de o beneficiário residir em paraíso fiscal, nos moldes do artigo 744 do RIR/2018. Confira:

 

Solução Cosit n. 309, de 26 de dezembro de 2018

“ASSUNTO: IMPOSTO SOBRE A RENDA RETIDO NA FONTE – IRRF EMENTA: REMESSAS PARA O EXTERIOR. DOAÇÃO. INCIDÊNCIA. Os valores remetidos a título de doação a residente ou domiciliado no exterior, pessoa física ou jurídica, sujeitam-se à incidência do IRRF, à alíquota de 15% (quinze por cento), ou de 25% (vinte e cinco por cento), na hipótese de o beneficiário ser residente ou domiciliado em país ou dependência com tributação favorecida. DISPOSITIVOS LEGAIS: Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966 (Código Tributário Nacional), art. 43; Regulamento do Imposto de Renda, anexo ao Decreto nº 9.580, de 22 de novembro de 2018 (RIR/2018), art. 744, caput e §1º.”

 

Solução Cosit n. 142, de 21 de setembro de 2021: 

“Assunto: Imposto sobre a Renda Retido na Fonte – IRRF. HERANÇA. PARCELA DE BEM. AQUISIÇÃO. Não há incidência do IRRF sobre o pagamento realizado a herdeiro residente no País pela aquisição de direito à parcela de bem que lhe cabia em decorrência de herança. Haverá incidência do imposto se o herdeiro for não residente. Dispositivos Legais: arts. 35, VII, “c”, 128, §4º, 680 e 741 do Regulamento do Imposto de Renda (RIR/2018), aprovado pelo art. 1º do Decreto nº 9.580, de 22 de novembro de 2018; e art. 1.784, da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002, Código Civil (CC/2002).”

 

Entendemos, entretanto, como equivocada a interpretação da Receita Federal do Brasil quanto à incidência do Imposto de Renda Retido na Fonte na transmissão de herança e doações de bens detidos por não residentes no país, em especial no que tange ao valor do “principal” herdado ou recebido por doação:

 

  • A CRFB atribui competência à União para a instituir o imposto de renda e aos Estados o poder de criar imposto sobre transmissões causa mortis (heranças) e doações. Desta forma, a União falece de competência para instituir o imposto de renda (no caso, o IRRF) diante destes últimos eventos (herança e doação), sendo, pois, inconstitucional o entendimento da Receita Federal neste sentido;

  • A transferência patrimonial realizada mediante doação/herança não se enquadra no conceito de renda tributável, apesar de ser um acréscimo patrimonial. Neste particular, a cobrança de IRRF se afigura inconstitucional e ilegal;

  • O Artigo 6º, Inciso XVI, da Lei n. 7.713/1988, em plena vigência, concede expressamente a isenção do imposto de renda sobre o valor dos bens recebidos por pessoa física a título de doação ou herança, não fazendo distinção entre beneficiários residentes e não residentes no País. Assim, a não sujeição ao imposto de renda (incluindo o IRRF) deve se aplicar a ambos, sendo ilegal qualquer cobrança que não observe tais preceitos;

  • Pelas disposições do Artigo 10, §2º, “b” c/c as do Artigo 97, §3º do Decreto-Lei n. 5.844/1943, ainda vigentes, pode-se concluir que o IRRF sobre pagamentos e remessas ao exterior se aplica sobre o rendimento bruto, não se computando nesse “o valor dos bens adquiridos por doação ou herança”.

  • A mudança ocorreu por meio de um decreto administrativo que não tem força de lei;

  • O recurso doado ou herdado deve ser entendido ou como renda ou como transferência patrimonial, pois são categorias excludentes. Do contrário, o contribuinte pagaria dois impostos distintos sobre o mesmo fato (bis in idem).

Desta feita, dada a possibilidade de discussão sobre a eventual incidência de IRRF com base em entendimento formalizado por solução de consulta da Receita Federal; e a possível mudança do cenário de incidência de ITCMD em caso de mudança legislativa (lei complementar); a regra atualmente vigente é a que segue:

Com efeito, tais regras – e riscos tributários advindos da aludida operação – impactam sobremaneira na dinâmica das relações a serem consolidadas por meio de um planejamento sucessório, patrimonial e/ou tributário específicos, razão pela qual devem ser consideradas, refletidas e submetidas igualmente a um planejamento prévio para maior eficiência tributária e operacional.